Don’t cry for me Argentina
Maria Eva Duarte Perón, ou Evita, como é carinhosamente chamada pelos argentinos, é dos maiores ícones da sua história. A sua presença torna o cemitério da Recoleta uma atração, apesar de ele ser especial sem essa publicidade. Evita faz parte das Free Walking Tours, tem um museu em Buenos Aires e encontramos a sua marca por toda a cidade e país. Talvez na Europa seja reconhecida principalmente pelo filme em que é representada por Madonna. Os argentinos detestam o filme, dizem que a historia é falsa, com erros históricos graves, como a presença de Che Guevara e que foi tão mau que Madonna nunca mais ousou representar.
Evita não era uma figura consensual da Argentina na sua época. Era adorada pelo povo e odiada pela classe alta. O seu site oficial diz que na sua morte, a 26 de Julho de 1952, se ouviu choro e som de rolhas de garrafas de champanhe a abrir. Dizem que os ricos fizeram questão de agradecer ao cancro por ter levado a sua inimiga.
Que tinha de especial esta mulher? Sem sangue azul, de origens humildes, acabou por chegar a primeira-dama muito jovem e tornou-se numa forte representante do povo. Para desespero dos seus inimigos, talvez ainda mais depois de morta.
Na sua infância, Evita vivia nos arredores de Buenos Aires com a mãe e quatro irmãos. O pai dividia-se entre as suas duas famílias, sendo esta a não oficial. O pai morreu quando ela era jovem, tornando a mãe no único ganha-pão da família. Aos 15 anos, Evita consegue convencer a mãe a partirem para Buenos Aires, perseguindo o sonho de ser atriz. Desempenha alguns papeis em cinema, televisão e rádio, e num festival de angariação de fundos para as vitimas do sismo de 1944 conhece o Coronel Juan Perón, responsável pelo departamento nacional do trabalho e vice-presidente. O coronel era 25 anos mais velho, viúvo, mas isso não os impediu de começarem uma relação e casarem. Evita viria a dizer que o dia mais feliz da sua vida foi o dia em que se conheceram.
Já enquanto atriz, Evita participava na luta pela reivindicação dos seus direitos, tendo criado o Agrupación Radial Argentina. Poderá dizer-se que a luta pelos direitos dos mais fracos foi o papel da sua vida. Enquanto primeira-dama decidiu que não ia ser uma boneca atrás de Perón, mas que iria caminhar ao seu lado e tornou-se na pessoa que ligava o povo ao governo, pois era com ela que desabafavam as suas dificuldades. Exigiu que o povo tivesse direito a cuidados de saúde, educação e lei laboral. Por sua iniciativa foram realizadas escolas, hospitais, sindicatos, campos de férias e cursos. Perón sempre viu com bons olhos que a sua esposa lutasse pelos direitos dos mais fracos e juntos conseguiram vários feitos, como o direito da mulher ao voto. O seu segundo mandato terá sido conquistado graças aos seus votos, pedidos por Evita enquanto estava a recuperar da cirurgia. A tomada de posse de Perón terá sido o seu último ato oficial antes de morrer de cancro de colo de útero, tendo sido a primeira paciente a receber tratamentos de quimioterapia na Argentina.
A história de Evita torna-se ainda mais dramática depois da sua morte e talvez sejam todos os acontecimentos dignos de novela que dão o toque romântico-dramático à sua história e a tornam numa figura quase idolatrada pelos argentinos. Eva morre e Perón cumpre os seus dois últimos desejos: conservar o corpo; e, depois do velório, ser colocada a descansar no seu escritório no edifício do sindicato dos trabalhadores (CGT). O velório dura 14 dias, o mais longo e mais concorrido da história do país, esgotou todo o stock de flores na Argentina. O povo chora por perder a pessoa que não só os ouvia, como também lutava por eles. Pouco tempo depois há um golpe de estado militar e Perón é obrigado a exilar-se em Espanha. O corpo de Evita é raptado e levado para parte incerta. Entretanto, Perón casa-se novamente, com uma mulher também mais nova e artista (cantora) e o corpo da sua falecida mulher continua em parte desconhecida durante 16 anos.
Os apoiantes de Perón decidem matar o general Aramburu e usar o corpo como moeda de troca pelo corpo de Eva. O corpo, que esteve enterrado em Milão com um nome falso, é desenterrado e devolvido a Perón.
Perón volta à Argentina e é reeleito presidente, acabando por morrer pouco tempo depois. A sua terceira mulher, Isabel, assume a presidência e traz o corpo de Evita novamente para a Argentina porque quer erguer um monumento para albergar os corpos dos dois falecidos.
Há um novo golpe, Isabel perde o poder e o corpo de Evita é entregue à sua irmã, que o sepulta na Recoleta, no mausoléu da família, onde até hoje permanece. Ter Evita no cemitério da Recoleta é uma ironia da história pois este cemitério alberga os mais ricos e poderosos do país. Lá estão sepultados 21 presidentes, vencedores de prémios Nobel, escritores, responsáveis pela independência e os seus inimigos, que tanto a odiavam. Depois de mortos, os inimigos passam a conviver em “paz”, como nunca quiseram fazer em vida.
Mas como a irmã de Evita tinha um mausoléu na Recoleta? Elisa, irmã de Evita, era casada com o senador Arrieta, que compra o mausoléu para a família, daí este ser o mausoléu Duarte e não Perón. É um mausoléu discreto, com várias placas oferecidas em memória de Evita e alguns objetos, como flores, peluches, pulseiras que são deixados pelos visitantes, que permanentemente, nas horas de visita do cemitério, se acumulam em fila junto a este.
O cemitério
O cemitério da Recoleta não merece a fama apenas por Evita, tem muito mais história que isso. É um cemitério, como já referimos, que alberga ricos e famosos argentinos. Tem algumas particularidades, como não existir terra. O cemitério tem gavetas em duas zonas, onde os corpos apenas podem ficar a título temporário, até 15 anos, e os mausoléus, onde os corpos ficam dentro dos caixões de parede dupla, madeira e metal. Para entender a grandiosidade dos mausoléus é preciso entender a época em que surgiram. A morte era a perda da pessoa no seu todo, não havia fotografias ou vídeos, apenas memórias, e como sabemos como estas são traiçoeiras, era necessário ajudar a não esquecer os que partiam e a sua grandiosidade. Cada mausoléu é um projeto que tem de ser aprovado, com vários andares no solo e ostentação na superfície. Encontram-se obras de escultores famosos, encomendadas na época à Europa, feitas propositadamente para o mausoléu onde se encontram, com materiais nobres. Quanto mais rica a família, maior o mausoléu. Neste momento, oitenta e cinco mausoléus têm importância histórica. Sobre estes, o cemitério tem autoridade e existe uma associação que recolhe fundos, através da venda de livros e mapas do cemitério, para a manutenção e reparação. Os outros, apesar de albergarem pessoas importantes, são propriedade privada e dependem exclusivamente da família para a sua conservação. Isto significa que no meio dos mausoléus fabulosos e bem conservados, encontramos sempre alguns que estão a desfazer-se. Em tempos, possuir um bocadinho de terra ali custava fortunas, neste momento continua a ser caro e mantê-lo implica pagamentos de taxas ao cemitério. Como os “terrenos” são herdados e podem ser vendidos, são também uma dor de cabeça em muitas situações, pois todos os herdeiros têm que estar de acordo e o terreno tem que estar registado no nome de todos os atuais donos. Já imaginaram o quanto as famílias já cresceram desde que alguém comprou aquele pedaço de “descanso”? Se já é difícil as pessoas se entenderem por partilhas de terrenos e casas habitáveis, imaginamos as dores de cabeça que é decidir sobre um terreno em que pouco se pode fazer além de mantê-lo e pagar a sua manutenção, ou vendê-lo.
Como curiosidade, soubemos na visita que existe uma portuguesa no cemitério e resolvemos investigar: filha de um italiano e de uma espanhola, nasce em Portugal Regina Pacini. Aos 16 anos começa a cantar como soprano e torna-se famosa nos teatros de todo o mundo. Marcelo Alvear, argentino, de boas famílias, solteiro e o mais cobiçado, apaixona-se pela voz e persegue-a pelos teatros da Europa até a convencer a casar com ele. Foi uma relação rejeitada pela classe alta e talvez por isso se tenham casado em segredo em Portugal. Foram sempre muito apaixonados, tendo ele sempre dado pouca importância à clara rejeição que a classe alta argentina fez à sua esposa. Dizem que até aos dias da morte dela, todos os meses, no dia 23, durante longas horas, Regina se sentava em frente do mausoléu onde estava o corpo de Marcelo com um ramo de rosas brancas e vermelhas. É dos primeiros mausoléus do cemitério, fica logo à entrada, do lado esquerdo, de quem entra.
O cemitério tem visitas guiadas grátis em espanhol, todos os dias às 11h, e aos sábados e domingos também às 15:30h.
365 dias no mundo estiveram 7 dias em Buenos Aires, de 26 de Fevereiro a 5 de Março de 2017
Outro artigos sobre Buenos Aires:
Tango ou Milonga em Buenos Aires?
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2 respostas
Fantástico ver pedaços da história contados por alguém “in Loco”…
Obrigado pelo seu comentário Anabela! Continue a ler as nossas histórias 🙂