Habitualmente tentamos complementar as nossas descrições do que vimos com alguma pesquisa histórica. Para nós é importante entender a história e achámos particularmente interessante, neste caso da dança, como ela se entrelaça entre os vários povos e países que nos são particularmente próximos, Portugal, Espanha e Angola. Falamos do tango e da milonga dentro da cultura argentina.
A caça ao gringo
Já vos dissemos que o tango não é assim tão relevante como estilo musical do país? Os argentinos gostam da música, mas nem todos sabem dançar o tango. Ou seja, é um pouco como o nosso fado. Embora haja orgulho de ser um género musical só nosso não é o tipo de CD que se ponha a tocar habitualmente. Contudo, se o ganha pão for dançar tango para turistas, já é diferente. No fim dos passos os dançarinos vêm pedir sempre uma “ajuda”. O Tiago, como viajante, acha que não tem de dar nada, viajar não é o mesmo que estar de férias. A Raquel já acha que se viu, ouviu e bateu o pé ao som da música deve dar qualquer coisa, nem que seja por vergonha de ser forreta. Talvez daqui a uns meses estejamos em sintonia em relação a este aspeto (nem que seja por irmos para países mais económicos).
As milongas
As milongas, contrariamente, já são dançar por prazer! Se tiverem que escolher entre a) um pacote preparado para turistas que inclui jantar seguido de um espetáculo de tango; ou b) uma milonga – não pensem duas vezes: b) Milonga!
Primeiro, e sempre importante, a milonga é grátis, enquanto o jantar + espetáculo é caro. Segundo, poderão ver nas milongas pessoas comuns, que dançam por lazer, sem serem bailarinos nem professores de tango (o que não quer dizer que não existam bailarinos lá misturados).
Tivemos a sorte de assistir a uma milonga organizada pelo Centro Cultural Kirchner, junto à entrada principal. Começam às 18h e são grátis (peñas milongueiras). Basicamente, têm um palco, porque alguma da música é tocada ao vivo, e uma enorme pista de dança rodeada de algumas mesas de esplanada. Para nós foi extraordinário ver a pista cheia de gente a querer dançar, mas não era tango, era musica popular, folclore! A milonga é o nosso bailarico de aldeia!
A milonga é um estilo de dança de influência europeia e africana, o que historicamente nos leva de volta a Portugal, que andou sempre às turras com Espanha por mais um pedaço de terra, e a Angola, a origem de muitos dos escravos (o povo bantú). A milonga tem muito de Espanha e alguma influência clássica. Consegue-se encontrar semelhanças com a dança popular espanhola e a recriação da dança erudita que vemos nos filmes de época.
A Chacarera
Nas noites dançantes não se dança só tango ou milonga. Encontram também o típico folclore argentino chamado chacarera. É extremamente engraçado de ver, envolvendo lenços e sapateado. Sente-se que as pessoas dançam com prazer e alegria, por isso é também para todas as idades. Vê-se que quem domina as milongas não se esquece dos seus acessórios, eles com os lenços, usados para enlaçar o par, e elas com os sapatos de salto. Um bom salto sempre ajudou a mulher a girar e rodopiar. Por muito confortável que seja o ténis (ou sapatilha para o Tiago), na dança o salto é rei.
O Tango
Fazendo uma comparação com a milonga e a chacarera, o tango é um estilo que também nasce a partir dos movimentos migratórios, mas muito mais sensual, apesar de mais rígido. Quando se pesquisa a história do tango, vem associado a influências europeias e à prostituição. Ou seja, muitos homens imigrantes e poucas mulheres levaram ao aparecimento das casas de prostituição. Então, dizem que o tango nasce durante o tempo de espera para ser atendido, primeiro dançado só entre homens e depois já com a mulher. Por outro lado, o nosso professor de tango negou essa versão da história (ah, pois é, aqui o casalinho não perdeu a oportunidade de uma aula grátis). Confirmou que essa é a versão que se espalha, mas que na verdade existem provas físicas de que na época toda a gente sabia dançar, inclusive as senhoras “de boas famílias”, sendo provavelmente dançado em casa. Por estar associado aos bordéis, inicialmente não foi bem recebido, e tentou-se parar o seu crescimento, existindo mesmo o registo de pessoas que foram presas por estarem a dançar, algo que é historicamente importante para datar a criação deste género musical.
Como tudo na época, as novidades eram levadas à europa e voltavam diferentes, com outras influências. Neste caso, o tango mudou, deixou de ser apenas instrumental e passou a ser melancólico e cantado. Com o sucesso desta evolução na europa, a burguesia argentina lá teve que se render ao estilo musical, valorizado primeiro fora do país e só depois pela elite argentina.
Pela nossa experiência na aula grátis, oferecida pelo Hostel Portal del Sur, o tango é difícil, sendo o oposto do kizomba, aprendido em Angola, onde a anca mexe. Tem passos giros, como aqueles em que a mulher contorna o homem ou faz um oito, que depois identificamos melhor quando assistimos a outros a dançar. Concluindo, até estarmos perto da graciosidade vão ser necessárias muitas aulas grátis.
Ver um par a dançar tango é lindo, prende o olhar, tentamos seguir os movimentos dos pés e perceber como o fazem. As roupas, a maquilhagem e o penteado da mulher são cuidados, seja num show pago, seja numa demonstração na rua em troca de gorjetas. Os saltos altos são imprescindíveis, juntamente com o batom vermelho e o vestido justo com uma racha para facilitar os movimentos de perna. É uma dança que dá poder à mulher, emancipa-a, torna-a o centro de todo o espetáculo, dá-lhe liberdade para brilhar, é ela quem decide os movimentos. O choque que provocam em quem vê vem da sua graciosidade. O homem é necessário, mas não é ele quem gere o espetáculo.
Toda a gente já ouviu tango, seja nos clássicos do símbolo argentino Carlos Gardel, seja Piazzola e o seu Libertango, seja o mais moderno dos Gotan Project. Argentina entendeu que o tango é o estilo que os apresenta ao mundo e decidiu assumir esse papel utilizando-o para cativar os turistas. Sigam o nosso conselho: ouçam e vejam tango em Buenos Aires, mas a identidade dos argentinos são as milongas e têm mesmo de os perseguir até uma.
Fiquem com um medley dos diversos momentos de música e dança ao vivo que tivemos oportunidade de assistir durante a nossa passagem por Buenos Aires (ignorem o amadorismo do Tiago, mesmo assim deu muito trabalho a montar):
365 dias no mundo estiveram 7 dias em Buenos Aires, de 26 de fevereiro a 5 de março de 2017
Outro artigos sobre Buenos Aires:
Este artigo pode conter links afiliados.