O fenómeno Rosalía, que chegou em 2019 ao Primavera Sound no Porto, veio mostrar que já não há música chunga (cafona). Rosalía traz o flamenco, as suas palmas, sentimentos, os gestos minuciosos com as mãos, mas tornou-o pop. Tão pop que dá vontade de descobrir as raízes do que a catalã nos canta. A sua influência é a cultura mourisca, cigana e judaica, juntas dão-nos o flamenco, da Andaluzia. Durante muito tempo não foi reconhecido grande valor a este género musical, mas agora foi declarado património cultural imaterial da humanidade. O ritmo é dado por instrumentos como o cajón, castanholas e a guitarra, mas também pelas palmas que acompanham quase todas as músicas. Já os movimentos das mãos, os vestidos e os leques dão graciosidade à dança.
Em Sevilha sabíamos o que não queríamos, pagar 25€ para assistir a um espetáculo de flamenco feito para turista, do tipo que os hotéis e restaurantes apresentam. Desses, vimos no Panamá e noutras vidas. Queríamos o verdadeiro sentimento, os amigos que se juntam para tocar e as mulheres que dançam sem os fatos que vestem na Feria de Abril. De calças de ganga, sem cabelos apanhados ou flores na cabeça. Encontrámos a custo e quase desistíamos pelo atraso na abertura da casa.
A tarefa de investigar a fundo o que há para fazer e visitar cabe geralmente à Raquel. É terrível a tratar de transportes, em ver como sair de aeroportos, mas encontra sempre uma coisa diferente nos meandros da internet. Chegámos a dois nomes para assistir a uma verdadeira noite de flamenco. Quisemos ir ao mais típico, ao que fazia fila para entrar e só abria em cima da hora. Triana é o bairro da moda, mas também é onde encontram a verdadeira noite sevilhana. Encontram os turistas nas tapas e pizzarias, mas se olharem bem encontram aquela cervejaria frequentada apenas por espanhóis. A que não precisa de ser bonita, “instagramável”, porque os da terra sabem que ali se come bem. A Casa Anselma também é assim. A própria abre a porta da sua casa das 23:30h às 2:00h, todos os dias, há 30 anos! Já quase foi despejada, foi forçada, após pressão dos seus fãs, a tornar o seu “clube” de flamenco um pouco mais turístico, mais conhecido e assim não poder fechar, e já sobreviveu a um cancro, sem nunca deixar de abrir a porta. Ganhou vários prémios e reconhecimentos, está nos guias espanhóis da vida noturna de Sevilha, e ainda é pouco conhecida por estrangeiros. Tudo a favor!
Chegámos ao bairro cedo e fomos beber um copo na rua para vigiar a fila que sabíamos que se ia formar. Às 23h tinha meia dúzia de pessoas, dez minutos depois cerca de 20. A fila crescia e os minutos passavam. A porta não abria. Dois portões de grades que nem se mexiam e do outro lado da rua passava gente a rir da fila que juntava já cerca de 50 pessoas. Às 23:45h começa o burburinho. Não abre? É feriado, não tem página oficial de Facebook, não há avisos na porta, mas ninguém desiste.
Chega um táxi, sai uma senhora que é logo cumprimentada. É a dona, a Sra. Anselma. Diz que vamos caber a custo, mas que vamos tentar “encaixar” todos. O truque é estar na fila cedo ou chegar já tarde. Ou seja, a porta não abre antes da meia noite, chegar às 23:15h, no máximo, é o ideal para se sentarem e ver o início. Se chegarem a partir da 1:00h já apanham tudo mais calmo e malta com mais vontade de dançar e bater palmas.
Assim que entrámos escolhemos um lugar numa fila com ventoinha e com vista para os quadros onde tudo se desenrola. Esqueçam a primeira fila, está reservada. Podem pedir as bebidas no balcão ou então esperam que Anselma chegue até vocês. O consumo mínimo é de 7€ por pessoa, seja uma cola ou um gin, e ninguém fica sem bebida. Paga-se no ato de entrega.
Não é um espetáculo organizado, o que para nós tem graça, mas vimos quem tenha desistido por não ser o que estava à espera. O conjunto era composto por dois guitarristas, um percussionista, desses todos cantam, um cantor e um “batedor de palmas”. As mulheres e os homens, quando querem, dançam. Mandam-vos calar e até parar as palmas se estiverem fora do ritmo, mas dão-vos um espetáculo de amigos para amigos.
Não há danças ensaiadas, leques, tocar nos vestidos, não há cabelos em coques nem homens de colete, há apenas pessoas que dançam com sentimento, aparentemente apenas quando apetece. Levantam-se da primeira fila, da segunda fila, arrastam cadeiras, mas se querem dançar não há aperto que os deixe sentados. Vão ouvir musicas conhecidas, gente a cantar com vontade. Vão ouvir uma loucurazita para fazer rir, como uma versão de uma música conhecida, no nosso caso apanhámos com um despacito aflamencado. As paredes contam histórias, há fotografias de Anselma com amigos, há loiças penduradas, cacarecos. Por momentos parece a versão espanhola de um lisboeta Procópio ou Pavilhão Chinês.
Não é espetáculo para todos, há tempos mortos, estão apertados e quentes entre cadeiras e mesas, é obrigatório pedir algo e a lista é curta. Com álcool, só gin ou Martini. Se quiserem desfrutar do flamenco como um sevilhano é ali. Tem graça que quando falámos à nossa anfitriã de que tínhamos lá passado ela diz que são amigas há mais de 30 anos e ficou admirada de termos descoberto aquilo sem ninguém nos recomendar.
O flamenco não está confinado aos espetáculos pagos ou a este tipo de clubes. Também podem assistir na rua, vão encontrar dançarinos a atuar vestidos a rigor em troca de propina. Nós vimos na Plaza de España e em mais algumas ruas centrais. Assemelha-se mais a um espetáculo e espera-se que contribuam se pararam para ver.
365 dias no mundo estiveram em Sevilha de 20 a 22 de junho de 2019
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