O carnaval é uma festa pagã que em Portugal se veste de diferentes formas. O carnaval mais brasileiro do país, o mais antigo, o mais tradicional e, agora, temos o reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO), os caretos de Podence, em Macedo de Cavaleiros. O reconhecimento chegou em dezembro de 2019, o que trouxe novos visitantes na edição de 2020, como nós. Pessoas de todo o país rumaram ao norte para conhecerem o entrudo chocalheiro, inundando as redes sociais de fotografias dos festejos. Este ano, até o Presidente da República marcou presença.
A tradição é masculina, apesar de já se verem “facanicos” (caretos mais novos) meninos e meninas. Os caretos tradicionais eram jovens rapazes que aguardavam pelo carnaval para poderem ir ter com as raparigas solteiras, chocalhando as jovens raparigas com algum atrevimento e aproximação. Sabemos que o Portugal dos nossos avós era muito tradicional e, numa altura em que se namorava à janela, era a oportunidade para, durante uns dias, poderem agarrar o inacessível. O fato e a máscara davam um ar anónimo e brincalhão, com a vantagem de não serem reconhecidos pelos pais das moças nem pelas visadas.
História
Comecemos por relembrar que, embora os chocalhos não sejam uma tradição exclusiva de Pondence, é aqui que se tornaram famosos, merecendo o reconhecimento da UNESCO. Existem também os caretos de Lazarim, menos famosos, mas não menos tradicionais.
A origem desta tradição pode estar nos romanos, nas festas Lupercais. Os homens saíam às ruas meios nus, com peles de animais nas mãos. Sacudiam-nas, acertando nas mulheres para as tornarem fecundas.
Os nossos caretos são, então, diabos encarnados que saem à rua para fazerem maldades e assaltarem garagens e caves para chegarem aos fumeiros e às garrafeiras. O careto é também viril, jovem e assanhado, por isso corre atrás das raparigas solteiras. Agarra-as de lado, numa espécie de abraço “agressivo”, e salta freneticamente, girando a cintura para que os chocalhos lhes acertem nas nádegas. A isto chama-se chocalhar.
O fato
O careto veste-se de forma colorida, de amarelo, verde e vermelho. O fato é feito a partir das colchas e tapetes tradicionais portugueses. Estas colchas, que antigamente todas as nossas avós tinham, hoje já não são tão comuns. Na época, eram fabricadas em teares caseiros, na própria aldeia. A manta ou o tapete são costurados em forma de fato, com calças, casaco e gorro. À manta, já transformada em fato, prendem-se franjas de lã tingidas. O capuz leva um prolongamento em lã colorida, uma espécie de cauda, que usarão para chicotear na rua quem lhes apetecer. O fato é guardado no final das festas para o ano seguinte, e é comum passar de pais para filhos.
À cintura, o careto usa um cinto de couro com os chocalhos de latão, 12 se for rico, 8 se for pobre. No peito usa as bandoleiras cruzadas, que podem ter campainhas. Na mão fica a bengala, para ajudar no equilíbrio quando salta. Há tradições que se vão perdendo, como bater com uma bexiga de porco ou uma pele de coelho cheia de ar. Na cara usa uma máscara que pode ser de latão, cabedal ou madeira, pintada de preto ou vermelho. O nariz é pontiagudo e tem aberturas para os olhos e boca. A tradição já não é o que era, e hoje já vêem homens mascarados que não condizem a 100% com esta descrição.
Manda a tradição introduzir as crianças ao ritual, vestindo-as de igual. Esta praxe começou por ser feita aos rapazes com idades entre os onze e os doze anos, perpetuando assim o hábito, incutindo-lhes o gosto de ser careto.
O festejo
O careto sai à rua no carnaval, na transição do inverno para a primavera, porque tem poderes para limpar as terras e trazer fertilidade. Há também uma crença de que o careto não purifica só a terra, mas também a comunidade. O careto sai à rua do domingo à terça-feira de carnaval, saltando e gritando numa língua própria.
Na quarta feira de cinzas termina o ritual, quando todos vão à missa sem o fato, e só se ouvirão chocalhos no ano seguinte. O entrudo dura de sábado a terça-feira.
Da festa faz parte um pregão casamenteiro. Acontece no adro da igreja, na segunda-feira à noite. Com um funil usado ao contrário, gritam um pregão popular com nome de rapazes e raparigas da aldeia. A intenção é brincar, por isso, os casais que formam no seu pregão são inusitados, e juntam características reais dos visados, como ser preguiçoso, dorminhoco, boa cozinheira, etc. Quando estiverem a assistir, vão distinguir os habitantes locais dos visitantes pelas gargalhadas ao reconhecerem os nomes pregoados.
Palhas, alhas leva-as o vento!
Oh, oh, oh…
Aqui se vai formar e ordenar um casamento.
Oh, oh, oh…
E quem é que nós havemos de casar?
Tu o dirás.
Há-de ser a Maria Pita que mora no bairro do Castelo.
Oh, oh, oh…
E quem é que nós havemos de dar para marido?
Tu o dirás.
Há-de ser o João da Rua que mora lá em baixo no Porto.
Oh, oh, oh…
E que nós havemos de dar de dote a ela?
Tu o dirás.
Há-de ser uma máquina de costura
porque ela é uma boa costureira.
E que é que nós havemos de dar de dote a ele?
Tu o dirás.
Há-de ser uma terra ao Souto
para que não saia um de cima do outro
enquanto for Inverno.
Este ano o festejo foi organizado pela Associação Grupo de Caretos de Podence, com o apoio de outros parceiros. Do entrudo chocalheiro fizeram parte os passeios e visitas ao Geopark Terras de Cavaleiros, os geocruzeiros na Albufeira do Azibo (inscrição prévia), a Ronda das Tabernas, o Pregão Casamenteiro, a Queima do Entrudo, o Desfile de Marafonas e o Festival do Grelo. 26 restaurantes também aderiram. A marafona é uma rapariga mascarada com uma renda a cobrir a cara e um lenço na cabeça, e são respeitadas pelos caretos.
O Museu Casa do Careto está aberto durante todo o dia, onde podem ver os manequins vestidos de marafonas, caretos e um vídeo que conta a história e tradição. Tem também uma loja de recordações no interior do museu.
Na segunda-feira à noite houve queima do entrudo e os caretos serviram aguardente aquecida a todos. Terça-feira houve novamente queima do entrudo, com uma assistência ainda maior do que na noite anterior.
Conhecer um careto
Chegámos na segunda-feira, pousámos as coisas no alojamento e fomos para Podence. Decidimos beber licor tradicional numa taberna onde já estava um careto e onde se vendiam máscaras tradicionais. O taberneiro, descobriríamos depois, faz parte da tradição, aparecendo no vídeo de apresentação na Casa do Careto e sendo o pregoador do Pregão Casamenteiro. Metemos conversa com o Careto, um senhor na casa dos 50 anos. Já o pai dele foi careto, e ele começou a vestir-se em memória do pai, apenas há poucos anos. Conta-nos que trabalha na câmara, é cantoneiro. Diz-nos também que quer manter a tradição, que o faz por gosto, e fica surpreendido quando o taberneiro lhe oferece o licor, dizendo que “Caretos não pagam”. Cruzar-nos-emos várias vezes até terça-feira, inclusivamente, será dos primeiros a chocalhar a Raquel.
Onde comer
Há restaurantes típicos, mas tradição é a população abrir as suas garagens, colocar umas mesas e bancos, e servir refeições.
Nós almoçámos na Tasca dos Bombeiros de Macedo de Cavaleiros e jantámos na tenda principal.
É obrigatório experimentar as alheiras e os casulos, em sopa ou cozido.
Curiosidades
Apenas para as franjas do fato de careto são precisos dezenas de novelos de lã. Dizem que são necessários sessenta, o que encarece o fato.
Podence está decorada a rigor, vão encontrar várias paredes e muros pintados.
Onde ficar:
Nós reservámos em cima da hora, por isso sujeitámos-nos a ficar mais afastados da vila. Sugerimos a Quinta da Moagem, um alojamento com piscina em Podence, e o Monte do Azibo Glamping.
365 dias no mundo estiveram em Podence de 24 a 25 de fevereiro de 2020
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