Imaginem-se no século XV, dentro dum coche, de luto. Morreu o vosso tio Afonso, que por acaso é também o vosso sogro. As cerimónias fúnebres são no mosteiro da Batalha, local onde D. Afonso V está sepultado até aos nossos dias. Olham pela janela, provavelmente cheios de tédio, e no caminho de Óbidos até à Batalha vêem pessoas a tomar banho numas poças de água. Estranho, não? Reza a lenda que foi assim que nasceram as Caldas da Rainha, inicialmente as Caldas de Óbidos. Fala-se também numa ferida da rainha, que ela decidiu tratar nessas águas milagrosas por ordem dos médicos. Sendo mito ou não, a rainha acreditou naquelas águas termais e fez nascer com os seus fundos (Casa das Rainhas) o primeiro hospital termal da Europa. O seu poder curativo já era conhecido desde D. Sancho I, mas não havia condições para os doentes, apenas umas barracas.
A Casa das Rainhas, o fundo que permitia às nossas rainhas receberem rendas patrimoniais e territoriais, passou a englobar as Caldas da Rainha, que com o foral da rainha passaram a crescer em torno do hospital. Para ajudar ao desenvolvimento das caldas havia isenção de impostos. D. Leonor que acreditava no projecto de ter um hospital que servisse os pobres cria o Compromisso da Rainha, ficando escrito que o hospital das Caldas da Rainha tem de apoiar os pobres e doentes. Mais tarde a rainha velha, já viúva e com apoio de seu irmão, o rei D. Manuel I cria em 1498 a Misericórdia de Lisboa, ficando claro que os pobres e doentes foram sempre uma das suas causas mais nobres. Mas nem só de D. Leonor e termas vivem as Caldas. Hoje é cidade criativa UNESCO e as artes correm-lhe nas veias, principalmente através da cerâmica.
É com o livro de Ramalho Ortigão “Banhos de Caldas e Águas Minerais” (1875) que a Raquel faz a viagem até à cidade, 13 páginas onde se podem ler os preços dos alojamentos, pequenas curiosidades sobre os edifícios, sugestões de destinos próximos como Batalha ou São Martinho do Porto e números do hospital termal. A viagem de uma hora passa-se com a leitura deste roteiro de viagem de 1875, que em alguns aspectos continua actual. É uma pequena coincidência viajar com o livro de Ortigão, já que falar nas Caldas da Rainha é falar também de Bordalo Pinheiro. Bordalo cria com o apoio de Ramalho Ortigão a Fábrica de Faianças, célebre em todo o mundo e com peças icónicas, muitas nas casas portuguesas mias antigas. Mas voltemos às faianças, a Rota Bordaliana é o primeiro ponto de encontro com as cerâmicas na cidade, se entrarem pela Rodoviária verão um papel de azulejos. O percurso turístico mostra ao visitante as 20 figuras chave de Bordalo. As réplicas foram agigantadas e encontram-se em pontos-chave da cidade como ruas, a estação ou pendurados em árvores. Podem recolher o flyer no Posto do Turismo, onde encontrarão a figura do Polícia, ou no Museu do Complexo Termal.
Rafael Bordalo Pinheiro é um artista completo do século XIX. Tinha um humor aguçado que expunha em caricaturas ou jornais e mais tarde através de figuras populares como o Zé Povinho (“se queres fiado, toma”) fabricadas na sua fábrica. Existe um ponto para tirarem foto junto de Bordalo e do Zé Povinho.
A fábrica criou peças notáveis, em que muitas arrecadaram prémios. Após o seu falecimento, o filho manteve viva a memória do pai numa nova fábrica (Faianças San Rafael), após a venda em hasta pública da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha de Rafael. Mais tarde foram trabalhadores e ilustres das Caldas que não deixaram a fábrica fechar e nos nossos dias a Fábrica Bordalo Pinheiro foi adquirida pela Visabeira, que também detém a fábrica da Vista Alegre. Provavelmente muitos da nossa geração já não se recordam de ver as peças da Bordalo, mas o seu serviço couve esteve nas bocas da imprensa nacional quando Tory Burch apresentou na sua coleção um serviço semelhante, mas com folhas de alface, em 2021.
A cerâmica continua presente na cidade e vários artistas caldenses dedicam-se a esta arte. Várias lojas da cidade vendem peças de artistas locais, e outros espaços fazem workshops, como a loja do Sr. Jacinto, a Mayan (que também vende produtos feitos em mercado justo no México) ou por exemplo a 19 Tile, que é um alojamento decorado por 11 ceramistas caldenses.
Um dos sítio onde podem encontrar os artistas e o seu trabalho é nos SILOS Contentor Creativo, mas o espaço abre em datas específicas. O nome surge da origem do edifício, uma antiga fábrica de moagem, da Ceres. Toda a fábrica engloba vários negócios, cafés, loja de noiva, escritórios, galerias, etc. O projecto nasceu em 2010 para apoiar os estudantes que não tinham um espaço onde desenvolver a sua arte.
A cidade das Caldas da Rainha é também uma cidade de museus. Existe uma espécie de quarteirão onde a maioria se encontra e que nos mostra a riqueza artística da cidade, ficam no Centro das Artes. São eles o Atelier-Museu António Duarte, o Espaço das Concas, O Museu Barata Feyo, o Museu Leopoldo Ferreira e o Atelier-Museu João Fragoso. São todos de entrada gratuita.
Junto a estes fica o Museu da Cerâmica, inserido na Quinta do Visconde de Sacavém, um palacete tardo-romântico. Era um museu muito desejado pela população, aberto em 1983, e não deixa de ser algo peculiar, por “misturar” peças de várias épocas. Custa 3€.
O Museu de José Malhoa fica no Parque D. Carlos I, o jardim feito para permitir que os doentes pudessem passear ao ar livre enquanto se encontravam em tratamentos. Natural das Caldas, Malhoa foi pioneiro do naturalismo em Portugal. Morreu em 1933, ano em que abriu o museu na sua cidade. Custa 3€, mas está temporariamente fechado.
Tanto o Parque D. Carlos I como a Mata D. Leonor fazem parte da riqueza do hospital, que por curiosidade fazia parte do SNS, através da junção com o hospital das Caldas da Rainha (Centro Hospitalar das Caldas da Rainha), mas cedido à Câmara Municipal desde 2015. A rainha D. Leonor possuía as terras onde mandou erguer o hospital e criou um sistema inovador, existia médico 24h e um corpo são precisava duma mente sã. Os doentes começavam a sua cura na Igreja nossa senhora do Pópulo, que ainda hoje existe todos os dias celebra uma missa para os doentes. A mata permite manter as águas termais limpas, o jardim permite espairecer o espirito enquanto passeiam de barco no lago, ou se sentam na relva a fazer um picnic ou só a descansar enquanto lêem um livro. É impossível vir às Caldas e não passar pela mata, pelo parque, e visitar o museu do hospital e das caldas. Aqui podem aprender mais da história do hospital, inicialmente em muitas sinergias com a igreja, já que não havia cura sem um espírito puro. As suas águas tratam doenças respiratórias e ostearticulares e têm protocolos com o SNS (pedir uma P1 no médico de família) ou com ADSE. Causa-nos alguma tristeza ver abandonados os Pavilhões do Parque, imagem de marca do hospital que reconhecemos logo no cenário da série portuguesa Causa Própria (RTP), achamos que havia potencial para mais. Os pavilhões são da autoria do arquitecto Rodrigo Berquô. A sua morte suspendeu a obra. O Museu custa 4€, o hospital 2€ e a igreja é gratuita, mas só abre às quartas-feiras e domingos.
Para nós outro ponto que marca sem dúvida como uma atração inegável da cidade é a Praça da República com o seu mercado da fruta, a Praça da Fruta. Aqui encontram frutas, pão, frutos secos, flores e algum artesanato. O cheiro enquanto circulam entre as bancas é maravilhoso e não há melhor sítio para conhecer os residentes habituais que um mercado. Na nossa primeira visita aproveitámos para comprar fruta para a Maria. Estando no mercado é imperdível o Café Central, um café com história com um painel de Júlio Pomar (Unicórnio de 1955). O painel é simples, azul com os pegasos traçados a dourado, foi restaurado com apoio da Fundação Espirito Santo. Deve ser um dos cafés mais antigos da cidade, do século XVIII, mas é durante a ditadura que se torna um pouso das mentes pensantes, ou da oposição. A sua decoração atual mantém uma certa reverência para a sua época áurea e acaba por ser um pouco como viajar no tempo. Sentem-se numa mesa junto ao painel e conspirem ou comentem apenas a política atual para se sentirem como os pensadores revolucionários da época.
D. João V, o mesmo rei que mandou erigir o aqueduto de águas livres, manda fazer obras grandes no Hospital, que visitou diversas vezes em busca de tratamento, e na cidade. É assim que nasce o Chafariz das 5 bicas e o Palácio Real, onde se hospedava a família real. Quando o rei visitava as Caldas a vila ascendia quase a capital do reino, alterando o seu dia-a-dia e ficando cheia nobres.
Deixámos para último o Jardim da Água, mas é também imperdível. É uma obra do Mestre Ferreira da Silva. Ferreira da Silva, natural do Porto chega às Caldas através da SECLA (Sociedade de Exportação Cerâmica SA), hoje fechada. O jardim de água é uma das obras que mais impacto causa, iniciado nos anos 90, junto à administração do Hospital Termal. Nunca foi terminado. O espaço é aberto, podendo ser visitado em qualquer altura. Tem sido vandalizado e tem um aspecto decadente porque ninguém reinvidica a sua propriedade nem assume as reparações. É uma obra pedida ao Mestre pelo Centro Hospital das Caldas da Rainha, que pretendia continuar a obra até às 5 bicas. Hoje o hospital é gerido pela Câmara que pretende renovar o jardim de água, mas não o tem sob a sua alçada.
Onde comer
Há vários sitios onde comer. Nós experimentámos o Kabuki (japonês) e o Bites & Bitaites Concept Store. Sabemos que o 19 Tile agora tem um restaurante/petiscaria a Maria dos Cacos.
Onde dormir
Há alguns alojamentos como o hotel da cadeia Sana e vários alojamentos locais. Nós ficámos no 19 Tiles em 2021. É um espaço centrado na cerâmica, decorado por artistas locais. Organizam workshops.
Porquê visitar as Caldas da Rainha?
Se estão em Lisboa é um ótimo destino de um dia. Tanto de carro próprio como de transportes públicos (autocarro). É cidade criativa UNESCO, é uma cidade que transpira arte, que respira termas e que tem o toque macio de um azulejo vidrado.
Quanto às pessoas, são criativas e acima de tudo resilientes. Se visitarem a cidade agora em 2023 verão como as montras, quase unanimemente, mostram a indignação quanto à localização do novo hospital, retirando o polo da cidade. Não se ficam apenas pelo luto na montra, existe uma iniciativa de enviar postais diários ao PM e ao PR para os sensibilizar.
Uma visita às Caldas da Rainha pode ser combinada com Foz do Arelho (praia), Leiria, Óbidos, Bombarral ou Peniche.
365 dias no mundo estiveram nas Caldas da Rainha de 12 a 14 de setembro de 2021 e a 22 de agosto de 2023
Este artigo pode ter links afiliados
10 Responses
Ola, muito interessante Caldas da Rainha! Fiquei curiosa para visitar lendo sobre os museus. Já estive em Óbidos e como tenho vontade de voltar, já sei que posso associar as duas cidades no roteiro.
Sim Mariana, é fácil conjugar as duas cidades. E ainda juntar com outras da região.
Caldas da Rainha parece ser uma ótima opção de bate-e-volta de Lisboa – são tantos passeios interessantes! Adorei a história da fundação da cidade.
Tem uma história linda a cidade, um pouco de mito urbano, por existirem algumas versões ligeiramente diferentes.
Eu já passei algumas vezes por lá no caminho pra Óbidos. Agora seu post vai me incentivar a parar para conhecer tanta coisa interessante
Tem que parar, é muito diferente de Óbidos mas em conjunto fazem um passeio giro.
As Caldas da Rainha rendem um passeio muito simpático e fotos giras. Um dia destes tenho que voltar. O Parque D. Carlos I tem uma estátua linda, ainda que sofrida, da rainha D. Amélia a chorar. Emocionei-me da primeira vez que a vi
O Parque é lindo, e remete bem à época em que foi construído. É uma cidade muito simpática.
Que máximo essa dica… Adoro informações de destinos de bate e volta e já anotei as dicas. Quando for a Lisboa certamente conhecerei Caldas da Rainha, obrigada por compartilhar
É uma cidade muito interessante.